Mostra BA - 2024.2
Grupo de pesquisa.
Grupo de pesquisa
O grupo de pesquisa convidou estudantes de todos os cursos e semestres a participar de uma imersão na MostraBA. Esta exposição apresentou obras dos estudantes e funcionários da Belas Artes, valorizando a criatividade de nossa comunidade acadêmica.
Nossa proposta foi complementar as obras da mostra por meio de análises simbólicas, utilizando aspectos sociológicos da contemporaneidade. Os trabalhos selecionados refletiram seu lugar no mundo atual, e suas escolhas na execução foram um reflexo das vivências de cada artista. Buscamos relacionar as simbologias das obras, atentando ao seu espaço expositivo, à interação com os observadores e ao contexto social contemporâneo.
A interpretação proposta baseou-se na leitura das obras, convidando os participantes a decifrar camadas de significado presentes. Essa abordagem permitiu ao público investigar múltiplas dimensões das peças expostas, provocando um embate entre as complexidades subjetivas e a simplicidade potencial que as obras entregaram para a experiência com o público. Assim, a mostra não apenas exibiu arte, mas também convidou a uma reflexão crítica, educativa e provocativa sobre as obras escolhidas pela curadoria.
Ao analisarmos as obras, consideramos sua materialidade, suporte, técnica e os símbolos abordados, independentemente de seu eixo ou autor. O desafio foi criar textos que fragmentassem simbolicamente as obras, explorando a pertinência desses símbolos no contexto contemporâneo em que as obras e o público se inseriram.
O grupo de pesquisa realizou reuniões semanais durante o período de execução e montagem da Mostra BA 2024-2. Nestas reuniões, houve debates e discussões para que os pesquisadores pudessem produzir de forma efetiva, desenvolvendo suas habilidades de análise e interpretação artística.
A participação neste projeto foi aberta a estudantes de qualquer curso ou semestre, sem necessidade de experiência prévia em crítica de arte. Juntos, exploramos as camadas de significado presentes nas obras, contribuindo para enriquecer a experiência dos visitantes da exposição. Os trabalhos produzidos foram publicados junto à mostra.
O projeto permitiu que cada participante selecionasse uma obra e desenvolvesse uma análise própria, conectando-se com a Arte contemporânea produzida em nosso meio acadêmico.
Obras Analisadas
Confira abaixo as análises realizadas pelo grupo de pesquisa para as obras da Mostra BA 2024.2
Aquela que tudo sabe
A análise da obra destaca sua profunda conexão com a resistência feminina negra, carregada de simbolismos que evocam força, ancestralidade e espiritualidade. A figura central da composição é uma mulher negra trajando um vestido amarelo vibrante, cor associada ao orixá Oxum, divindade das religiões de matriz africana que representa a abundância, o amor e a fartura.
Sobre sua cabeça, ela carrega uma cesta cheia de frutas, um símbolo de provisão e prosperidade, que reforça sua imagem como provedora da vida e da abundância. O fundo azul, contrastando intensamente com o amarelo do vestido, é preenchido com os nomes de mulheres negras importantes na história da resistência, tanto feminina quanto racial. Esse elemento amplia a mensagem da obra, situando a figura central como representante de uma luta coletiva e de um legado de força transmitido de geração em geração.
Outros elementos na composição também reforçam essas conexões. O pano de cabeça da figura remete a Nanã Buruquê, orixá da sabedoria e da ancestralidade, enquanto o pé de espada de São Jorge, presente ao lado dela, está associado a Ogum, o orixá da guerra e da luta. Esses elementos dialogam com a simbologia de resistência, coragem e proteção, alinhando a narrativa visual com os valores das religiões de matriz africana.
A obra também provoca reflexões sobre padrões estéticos e culturais. Ela rompe com os conceitos de beleza impostos pela visão eurocêntrica, celebrando características e símbolos enraizados na identidade negra. O uso de cores, formas e referências culturais valoriza a ancestralidade e eleva a imagem da mulher negra como um símbolo de força e sabedoria.
Provocação: Como podemos, no cotidiano, reconhecer e valorizar as heranças culturais e espirituais da resistência negra que esta obra nos apresenta? O que essa imagem nos ensina sobre o papel das mulheres negras na construção de um futuro mais justo e consciente?
Atenção 8 segundos
A palavra que define a instalação Atenção 8 Segundos é movimento. Ele é onipresente em toda sua estrutura, materialidade e interatividade. Em sua configuração espacial, percebemos o movimento em sua forma curva e passagem de frames ativados com a nossa interação ou com o vento.
A escolha de vara de pescar de metal, anzois e tiragens do vídeo "Baby-Shark" em papel acetato remetem ao ato de pescar, do respeito ao tempo que a pesca leva. Pensar o tempo e atenção no mundo de hoje é pensar em nossas relações interpessoais e com a tecnologia digital.
O artista traz em sua obra a era da informação e a alienação. A todo momento recebemos informações, mas não as digerimos, nem ao menos prestamos atenção no que estamos vendo. É uma provocação para desacelerar.
Medidas Drásticas
Tecidos, corpos e retalhos. Medidas drásticas, propõe uma perspectiva visceral, porém não menos sensível sobre a relação dialética entre a vivência trans - em especial a transmasculina - e as expectativas sociais para com essas pessoas em sua individualidade corporal.
As pessoas trans, no geral, encontram-se em um cenário social cuja subalternidade às expectativas cisnormativas sobre padrões de gênero as oprimem diretamente com violência sistêmica, verbal, física e sexual e indiretamente com as cobranças sobre como se portar socialmente e o que seria o corpo ideal. Nesse contexto, cirurgias plásticas se revelam como uma faca de dois gumes: por um lado, mostram-se como uma forma da pessoa trans exercer sua autonomia corporal e chegar o mais próximo do auto ideal e, por outro, são vistos como obrigatoriedades para ser um "homem de verdade" ou "mulher de verdade" e desconsideram os quão violentos e invasivos eles podem ser e, principalmente, qual o real intuito da pessoa para com seu próprio corpo.
Nesse sentido, o espectador, ao se deparar com o caleidoscópio de retalhos que, à primeira vista, parecem caóticos e "estranhos", é confrontado com as imagens quase impressionistas do corpo transmasculino durante e após as cirurgias mais comuns à essa parcela da população LGBT+. Mesmo com essa visceralidade dos tecidos esticados e presos à parede-como quem diz "isso daqui é uma prisão e você é o guarda que me vigia" - ainda é inegável o carinho que há em sua confecção pois, afinal, não se pode escolher nascer ou como vai ser seu código genético, porém é possível fabular sobre como será o restante da sua vida e como você será.
As imagens dos corpos durante e pós cirurgias pintadas em acrílico sobre tecido possuem, então, uma potência material ambígua uma vez que a textura dessas imagens é capaz de causar um forte impacto a quem vê e, a partir disso, refletir sobre a vivência trans: é inegável o sofrimento que há na transgeneridade, mas, ao mesmo tempo, há uma beleza legítima em poder se formar e vir a ser o que se quer.
O que posso fazer para entender uma pessoa trans? O que pode ser feito para combater as opressões externas? Os pedaços que nos formam são violência ou carinho? Ou os dois? O que é ser alguém? O que me torna eu?
A obra, tal qual o ser humano cis e trans, é um exercício de constante devir. Somos a medida de todas as coisas que passamos. Resta a nós, enquanto indivíduos, julgarmos seremos meros observadores ou então criadores de uma nova perspectiva.
Carne de mulher
Carne de Mulher remete à sociedade de consumo contemporânea, onde tudo e todos são precificados, seja de forma explícita ou velada. O livro-objeto é apresentado como uma bandeja de carne semelhante às encontradas em mercados, contendo informações como preço, data, peso e código de barras. No entanto, esses dados são substituídos por informações pessoais da artista.
Assim, a obra cria uma vulnerabilidade velada, que não precisa ser enfrentada diretamente pelo público, permitindo que cada pessoa observe os detalhes descritos sem a possibilidade de criticar diretamente o "corpo" da autora.
A potência da obra reside na materialidade utilizada para simular carne à venda, evocando repulsa por meio de sua textura e aspecto simulacro. Essa escolha estética amplifica o impacto emocional da peça, gerando um misto de desconforto e reflexão no público. A textura da carne, tão visceral e crua, remete à vulnerabilidade do corpo humano, especialmente em sua condição feminina, refletindo a violência da mercantilização do corpo.
Por meio dessa materialidade, a obra também estabelece um diálogo crítico com a cultura de consumo, onde tudo pode ser transformado em produto, inclusive corpos humanos. O corpo feminino, historicamente associado à sensualidade e fertilidade, é amplamente explorado pelo mercado publicitário, pela indústria da moda e por outras esferas culturais.
Nesse contexto, "Carne de Mulher" denuncia a lógica consumista que desconsidera a subjetividade e a individualidade, destacando como muitas mulheres se sentem como "pedaços de carne na vitrine", sem controle sobre como seus corpos são percebidos.
Além disso, ao expor informações pessoais da artista como parte do produto, faz a obra questionar a fronteira entre o pessoal. Essa escolha convida o observador a refletir sobre o quanto as mulheres, são frequentemente despersonalizadas para atender às expectativas sociais.
A carne, como elemento central da obra, carrega significados profundos. Ela simboliza o efêmero, o perecível, e alude à fragilidade da condição humana. A associação entre carne e corpo feminino traz à tona questões como violência de gênero, exploração sexual e a perda de autonomia sobre o próprio corpo em uma cultura patriarcal. Ao mesmo tempo, é um ato de resistência: ao expor a vulnerabilidade de maneira calculada, a artista reivindica seu poder sobre a narrativa do corpo e do olhar que recai sobre ele. É uma obra que mistura estética, provocação e poesia, gerando uma reflexão profunda sobre as dinâmicas sociais que nos cercam.
A obra desafia o público a confrontar seu próprio papel no processo de objetificação. Ao observar a peça, o espectador é forçado a lidar com seu desconforto: por que a ideia de um corpo humano embalado como carne é tão perturbadora? Seria porque, de alguma forma, reconhecemos essa prática, ainda que simbolicamente, no dia a dia?
Nossa Bandeira jamais será vermelha
A obra faz referência ao discurso do ex-presidente Jair Bolsonaro, que afirmou que "nossa bandeira jamais será vermelha", se referindo às cores da bandeira do partido comunista; junto da frase se dá ao passado político do país que passou por uma ditadura que abertamente perseguiu comunistas.
O artista trata ironicamente sugerindo que a bandeira já está manchada pelo sangue e pelas injustiças sociais. O uso de manchetes de jornal faz uma conexão direta com a forma como os eventos políticos e sociais são moldados e interpretados pela mídia, lembrando o controle da informação durante a ditadura, quando o regime impôs censura e manipulação das notícias.
A presença dos respingos vermelhos sugere uma violência contínua, seja física ou simbólica, associada ao sangue, à repressão e às injustiças que atravessam o tempo. O vermelho, então, não é só um símbolo de ideologia, mas um lembrete das atrocidades cometidas por regimes de repressão que deixam cicatrizes profundas no tecido social.
A instalação no chão e a interação do público convidam à reflexão e participação ativa, tornando a crítica mais envolvente. O trabalho denuncia a violência, o desmatamento, os discursos de ódio e a ascensão da extrema-direita no Brasil, usando a arte para provocar um confronto com a realidade recente do país.
Não é apenas uma crítica ao momento político atual, mas uma reflexão sobre a continuidade das opressões e da violência, convidando todos a reconhecerem as feridas do passado que ainda estão abertas e continuam a afetar o presente.
Ser
Ser consiste em um tecido com enchimento que remete muito a uma pele orgânica em contraste a uma estrutura geométrica em metal que engloba esse tecido que podemos nomear de corpo maleável. Um corpo que apesar de ser fluido ganha na potência de tentativa e contraste do corpo rígido que necessita o fechamento e a inflexibilidade de ser compacto um corpo maleável e rígido, um corpo muito tratado no ensaio de Donna J. Haraway, bióloga e filósofa norte-americana (1944-), intitulado Manifesto Ciborgue, faz referência ao Manifesto Comunista (1848) de Karl Marx e Friedrich Engels.
Nele, a mulher ciborgue, uma criatura formada pela fusão entre máquina e organismo, mistura de realidade social e ficção, não é definida por um corpo sólido, mas por componentes fluidos. Essa figura funciona como uma metáfora para uma nova política em um mundo cada vez mais moldado pela interação entre ciência e tecnologia, onde as fronteiras entre humano e animal, organismo e máquina, e entre o físico e o não físico tornam-se cada vez mais tênues. A mulher ciborgue, portanto, é aquela que tem permissão para explorar a própria existência.
7 HORAS
A obra traz como tema mulheres que passaram por casos de assédio, utilizando da materialidade do palito como objeto banal e pequeno para denunciar essa violência. A quantidade enorme de palitos denuncia a quantidade assustadora de mulheres que passaram por esse tipo de violência, além disso, o objeto escolhido para representá-las traz um simbolismo específico, esse de ser considerada apenas mais um caso de assédio, um palito entre uma montanha.
A expressão popular 'procurar agulha no palheiro' evoca a ideia de uma busca árdua e quase impossível. No entanto, a obra de arte, com seus 3500 palitos, subverte essa noção. Ao invés de buscar uma única agulha perdida em um monte de palha, a instalação artística nos convida a refletir sobre a quantidade de nomes ali expostos e como representam mulheres de verdade.
Cada palito, com o nome de uma vítima, representa uma agulha fácil de encontrar, revelando a triste realidade de que o assédio sexual é um problema generalizado. A ironia reside no fato de que, em vez de ser difícil encontrar uma agulha, é quase impossível não encontrar uma mulher que passou por esse tipo de violência.
A instalação em cima de uma mesa possibilita a aproximação do espectador o que potencializa a proposta, podendo se aproximar e ver não só a quantidade de palitos mas também os nomes escritos.